Como Edward Butler defende em seu ensaio Plotinian Henadology, pode-se apontar no tratado Sobre o Número de Plotino uma prefiguração da doutrina das unidades divinas que seria mais tarde desenvolvida explicitamente em Proclo. Realmente, Plotino argumenta, no décimo capítulo do tratado mencionado, que se “os entes tivessem surgido antes do número, e o número fosse neles diligentemente observado à medida que a natureza enumerante tivesse se movido por tantos quantos fossem as coisas enumeráveis, teria sido por acaso, e não por um propósito deliberado, que haveria uma tal quantidade de entes”, de onde se concluí pela necessidade de “unidades (ένάδας) que reservam lugar para os entes que sobre elas virão a se assentar”.
Não se pode ignorar, entretanto, que Damáscio, na sua obra Sobre os Princípios, afirme que praticamente todos os filósofos antes de Jâmblico tenham dito que “há um Deus acima do Ser, e que os outros são substanciais e feitos divinos por iluminações do Uno, e que a multiplicidade de hênadas sobre o Ser não é de hipóstases auto-duradouras, mas de deificações iluminadas pelo único Deus e transmitidas por meio de substâncias”. De fato, uma simples análise do contexto no qual Plotino faz sua afirmação sobre as hênadas nos mostra que essas não são subsistências anteriores ao Ser, mas uma pluralidade preparatória contida pelo próprio Ser.
Em Jâmblico - embora a ausência do termo ένάδας seja observada em suas obras sobreviventes - encontramos, verdadeiramente, o primeiro atestado de uma pluralidade anterior ao Ser, chamada θει̑ος ἀϱιθμός (número divino) nos trechos de sua obra Sobre o Pitagorismo preservados por Miguel Pselo. É em um desses trechos que Jâmblico diz: “Como há uma causa física dos números físicos, uma ética dos éticos, assim, dos números divinos, há um princípio divino uniforme, anterior como causa como para as causas de todos os números, uma unidade uniforme pré-existindo mesmo todo número divino unificado”, ao qual pode se comparar o que é dito pelo mesmo em Sobre os Mistérios: “a ordem de todos os Deuses é profundamente unida” e “toda a multidão que é espontaneamente produzida ao redor deles, são consubsistentes em unidade, e também tudo o que está neles é um, — portanto, o começo, o meio e o fim neles são consubsistentes de acordo com o próprio Uno; de modo que nestes, não é apropriado indagar de onde o Uno acede a todos eles. Pois a própria existência neles, seja ela qual for, é esta de sua natureza”.
Por outro lado, é também Damáscio quem, observando o uso dos plurais ένάδας e μονάδας na discussão acerca do uno e do múltiplo no diálogo Filebo, vê já em Platão ao menos um sinal de tal doutrina, afirmando em seu comentário ao mesmo diálogo que: “O que ele chama mônadas e hênadas são os ápices das formas: hênadas, como vistas em relação às multidões delas dependentes; mônadas, como relacionadas a princípios supra-existenciais”. Não obstante, a questão levantada no Filebo sobre a relação entre os seres e suas unidades é respondida no capítulo décimo primeiro do tratado Sobre o Número, no qual Plotino diz: “deve haver então algum um que não seja nada mais do que puro e simples um, ficando isolado em sua própria substância antes de que cada coisa seja designada e inteligida como uma”, ao qual deve-se adicionar a observação feita por Butler, utilizando terminologia procleana, de que “A oposição aqui é entre aquilo que ativamente oferece unidade, que é ἑνιαῖος, e aquilo que é passivamente unificado, o ἡνωμένον ou ἡνωμένα”.
O que deve ser observado por nós é que as unidades pré-ônticas às quais Plotino aponta nos capítulos 10 e 11 de seu tratado não podem de modo algum ocupar o mero papel de pluralidade preparatória do Ser, uma vez que a divisão do Ser no número à qual se faz referência no capítulo décimo quinto do mesmo tratado já necessitaria da existência de unidades preparatórias, causando, portanto, uma regressão ao infinito. Dessa forma, embora Plotino não tenha encontrado em seu próprio sistema espaço para uma multiplicidade de unidades supra-essenciais, ainda há a necessidade de que as mesmas sejam afirmadas para preencher o espaço deixado.
Não obstante, o próprio Plotino vem nos dar auxílio em sua Enéada V. 3. 15. afirmando que:
“Mas de que maneira é essa Fonte? No sentido, talvez, de sustentar as coisas como doador da unidade de cada item único?
Isso também; mas também como tendo-os estabelecido em existência.
Mas como? Como tendo, talvez, contido eles anteriormente?
Indicamos que, portanto, o Primeiro seria múltiplo.
Podemos pensar, talvez, que o Primeiro continha o universo como um total indistinto cujos itens são elaborados para existência distinta dentro do Segundo pelo Princípio-Razão ali? Esse Segundo é certamente uma Atividade; o Transcendente conteria apenas a potencialidade do universo (δύναμις πάντων) por vir.
Mas a natureza dessa potencialidade contida teria que ser explicada: ela não pode ser a da Matéria, uma receptividade, pois assim a Fonte se torna passiva - a própria negação da produção.
Como então ele produz o que não contém? Certamente não ao acaso e certamente não por seleção.”
Se Plotino volta a se referir ao Uno como δύναμις τῶν πάντων na Enéada III. 8. 10. e πάντων τελεώτατον καὶ δύναμις na Enéada V. 4. 1., devemos observar que em tal encontramos nada mais que uma conclusão do seu argumento, exposto nas Enéadas V. 1. 6. e V. 4. 1., de que todo ser produza, sempre que não restringido, uma profusão de efeitos ao seu redor, de onde se segue que o Uno, enquanto plenitude do Real, deva ser não só uma Realidade subsistente em si mesma, mas também uma Realidade transbordante na qual os seres condicionados sejam sempre postos como participantes. É precisamente daí que se segue a necessidade de que o Uno seja a Possibilidade Universal (δύναμις τῶν πάντων) não enquanto potência passiva que deva ser afetada e tornada na efetividade, mas sim enquanto potência ativa produtora da efetividade. É precisamente aqui que identificamos as ένάδες τόπον εχουσαι τοΐς έπ’ αύτάς ίδρυθησομένοις, “unidades que reservam lugar para os entes que sobre elas virão a se assentar”, à δύναμις τῶν πάντων enquanto o Uno contenha em si mesmo os fundamentos dos quais os seres contingentes recebam tanto a sua essência, quanto a sua existência.
Cabe observar que Proclo, em seu comentário ao diálogo Parmênides (1107-1108), não deixa de citar que “outras autoridades", geralmente identificadas com Plotino ou Jâmblico, tenham atribuído ao Uno a prefiguração de todas as coisas sob a forma impronunciável (ἀφράστως), inconcebível (άνεπινοήτως) e oculta (κρύφια) de “modelos antes de modelos” (παραδείγματα παραδειγμάτον), aos quais Proclo crítica por introduzirem multiplicidade e divisão no Uno. Quanto a isso, cabe que digamos que tal multiplicidade não é, em nossa leitura, distinta daquilo que o próprio Proclo fundamenta nas proposições 64 e 65 de seus Elementos da Teologia: É o esplendor e excesso de Realidade do Uno, enquanto causa (αἰτία) de todo existir, que estabelece as hênadas fundamentadas em sua Subsistência (ὕπαρξις), das quais os seres contingentes se seguem como iluminações (ελλαμψεις). Nesse ponto, as hênadas não são algum tipo de divisão no Uno, como se dá com as ideias na Esfera do Intelecto, e sim um transbordar da Realidade do Uno no qual cada possibilidade do ser se prefigura plenamente fundada na Raiz Única e Inefável.
É, portanto, nessas unidades supersubstanciais, os “ápices das formas" na linguagem de Damáscio, que os seres condicionados tem a fonte de existir. Comentamos, por último, que o uso da expressão τόπον εχουσαι, “reservam lugar”, em Plotino é notável, considerando que Platão tenha utilizado outro termo para lugar, χώρα, na sua descrição da potência passiva anterior à criação. Em resposta a isso, concluímos que na emanatio ex Deo de todas as coisas há a síntese das posições extremas de uma creatio ex nihilo e uma produtio ex materia, de modo que é a potência ativa e infinita de Deus que, sendo infinitamente capaz de criar, estabelece seu contrapeso na potência passiva infinita da localidade sem que haja a necessidade de uma fonte externa.
“Não disse eu que tudo é um e que o Um é o Todo, porque as coisas existiram no Criador antes que as criasse? E não foi sem razão que o chamaram Todo, e ele de quem as coisas são membros. Tenha cuidado de lembrar-te, ao longo de todo esse discurso, daquele que sozinho é tudo ou que é o criador de tudo." - Hermes Trismegisto, Asclépio